domingo, 23 de dezembro de 2012

Conto: IUSTUS


No começo eu pensei: “agora foi, pirei de vez”. Não foi como nos filmes. Quando Eles chegaram, não fizeram nada. Ficaram só ali, imóveis. Durante muito, muito tempo. Dia e noite, aquelas coisas enormes paradas no céu, acima das nuvens – gigantescos aglomerados de blocos de metal branco dispostos aparentemente a esmo, como se unidos por uma estranha e poderosa força magnética. Eles cobriam a luz do sol e projetavam sua assombrosa e angustiante sombra na Terra o dia inteiro.

No primeiro dia, ninguém saiu de casa. No segundo, a mesma coisa. Mas com o passar das semanas, o medo das pessoas foi dando lugar à curiosidade, até que a rotina delas foi voltando ao que era antes. He, he... O povo da Terra pensou que não ia acontecer nada. Como eu não tinha um lar para me esconder, tal qual as pessoas de valor para a grande fábrica de dinheiro que era a sociedade humana, restava-me apenas ficar deitado o dia inteiro encarando aquelas abomináveis coisas no céu. E refletindo.

Eu, que já havia passado por todo tipo de coisa nessa vida, tive tanto medo quanto todo mundo. A sombra aterrorizante que se alastrava por todos os lugares ainda me causava o mesmo terror, apesar de todos já haverem aparentemente superado o susto inicial. Era fácil para todo mundo voltar à luta diária por suas valiosas vidas de robô. Mas eu, que não tinha mais nada, que estava preso a uma existência que não queria mais, vi-me obrigado a ser um espectador do fim dos tempos. Todo mundo estava tão enganado sobre como seria...

Nos jornais que eu usava para me cobrir, pude acompanhar como os homens reagiram pateticamente atacando aquilo que não conheciam, nenhuma surpresa quanto a isso. Contudo, os objetos continuaram a pairar na atmosfera, inertes.

Eu sabia que era um teste, e nós fomos reprovados.

Então Eles sumiram. Tão inexplicavelmente quanto no dia de seu aparecimento, os complexos espaciais titânicos deixaram os céus por um dia inteiro. Dessa vez não houve pânico, mas festa. Ninguém queria saber por que Eles haviam passado aqueles cinco meses ali, causado tanto terror e, subitamente, sumido. O dia de sol que se seguiu ao desaparecimento Deles levou todos às praias, exceto a mim, que fiquei deitado na calçada de uma loja (fechada por causa do feriado recém-estabelecido). Agora eu só queria a sombra. Não suportava mais a luz do sol e já começava a achar que as coisas só estavam bem durante o tempo em que Eles estiveram ali, sujando a imagem do firmamento.

De longe eu pude ouvir as buzinas pseudo-desobstruidoras de tráfego, vozes de vendedores ambulantes ensandecidos, crianças – argh! Durou um dia inteiro. Foi o próprio inferno.

No dia seguinte, quando Eles voltaram, pegando todos de surpresa no ápice de sua felicidade entorpecedora, o pânico tomou conta da humanidade. O caos total se instaurou em menos de uma hora e, no desespero, na agonia, muitos morreram. Depois, algo começou a descer pelos sulcos entre os agrupamentos geométricos de metal: um líquido grosso e arroxeado com manchas negras, que foi chegando lenta e pesarosamente à crosta terrestre. Foi a parte que eu mais gostei.

Toquei no líquido. Não tinha cheiro, temperatura, gosto, nada. Meu dedo ficou com a ponta suja e limpei-o em minhas vestes enegrecidas pelo lixo de vida que vinha levando. As reações das pessoas à substância foram as mais variadas possíveis, mas depois de um contato direto com ela, o efeito era o mesmo: Os habitantes da Terra abandonavam por completo o instinto irracional de correr e gritar, e simplesmente ficavam com um olhar vidrado no nada. Então se calavam e deitavam no chão com a boca aberta.

No fim, as naves partiram. O que ficou após elas foi um imenso vazio, uma ausência total de sentido em todas as coisas. Eles não vieram para destruir a raça humana, concluí. Vieram para dar-nos uma perspectiva diferente de quem nós realmente somos.

Por: Gilson França
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Esse foi um oneshot que eu escrevi há muito tempo inspirado por várias coisas, originalmente publicado nas minhas notas do Facebook. Agora que o "fim do mundo" passou, achei conveniente postar aqui como a minha contribuição pra produção artística apocalíptica dessa época. O tema está longe de ser associado ao calendário maia como primeira ideia do que e de como aconteceria, mas a minha ideia era essa, porque ninguém sabe como vai ser.
Imagem: filme District 9

2 comentários:

  1. Ainda lembro da sensação de ter lido esse pela primeria vez e de como minha imaginação fervilhou na construção das imagens.. Parabéns esse é um dos seus melhores que li.

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    1. Oba!!! Obrigado. Esse conto significa muito pra mim. :DD

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