domingo, 28 de janeiro de 2018

O fim dos sonhos


track: 



Why must we fall apart to understand how to fly?
I will find a way
even without wings
Follow your heart till it bleeds
as we run towards the end of the dream


Desde que comecei esse relacionamento com R., há mais de um ano, eu vinha enfrentando dificuldades para me reconectar comigo. Era a necessidade de passar um tempo sozinho, fazendo as coisas que eu gosto, fragmentadas como sempre, por causa dessa minha vontade de fazer tudo, experimentar de tudo um pouco, com uma pressa absurda, uma ansiedade como se temesse morrer na manhã seguinte. Esse tipo de coisa que me leva a não concluir as coisas. Ele mesmo já apontou esse defeito em mim, que agora vejo, de alguma forma está se estendendo a ele. Não quero que ele enfrente o mesmo que eu. Antes de nos conhecermos ele parecia ter uma vida bem mais tranquila.

Agora que nos casamos e ele está trabalhando, eu finalmente estou podendo aproveitar o dia sozinho. Isso me dá bastante espaço. Aprendi que a convivência em casal não é o desejo de estar próximo ao outro como quando estamos nos apaixonando, mas aprender a dividir o seu tempo com o outro – não o ceder a ele. De qualquer forma, a vida de casado com alguém que você ama e te ama também, construindo um futuro juntos, é o sonho de muita gente - inclusive o meu. Mas esse sonho tem um preço.

A vida adulta tem sido muito proveitosa e rica em experiências e aprendizados, mas na maior parte do tempo mais parece uma sucessão de tentativas esforçadas para frustrações iminentemente inevitáveis. A ansiedade permeia os cantos da casa, uma longa espera por algo que achamos que está para acontecer, algo que vai melhorar nossas vidas, nos dar mais tempo para aproveitar a juventude que nos resta. Eu sempre com essa minha crença de que em algum momento vou ter tempo para criar e desenvolver algo significativo, de relevância artística admirável e que será reconhecido – um livro, uma ilustração, uma história em quadrinhos... estou aprendendo uma dura verdade para minha alma de menino: essas coisas não vão se concretizar. As circunstâncias me levam a tomar atitudes em prol da minha sobrevivência: tudo é dinheiro, dinheiro e dinheiro, pois sem ele não temos nada. A verdade é essa.

É doloroso reconhece as coisas que não posso fazer. Quando era criança, eu tinha que lidar com o não que meus pais me diziam. Hoje, sou eu que tenho que falar esse “não” para muitas das coisas que eu quero. Pelo menos já parei de olhar para o lado e me sentir mal pelas conquistas das outras pessoas, porque enfim reconheci as minhas próprias. Já fiz as pazes com as minhas inadequações e aprendi a me perceber como alguém que é amado.

Ser amado implica em algumas responsabilidades. Eu me lembro que na adolescência havia um grande conflito em que eu não conseguia me amar. Eu havia determinado que o ideal de ser era algo inatingível para mim. Isso foi a maior crueldade pela qual eu já passei. Na realidade, aquela pessoa que eu era, mas não queria admitir, já era amada pelas pessoas mais importantes para mim. Assim como hoje. Eu não sou tudo que gostaria, mas sou amado do jeito que sou e é minha responsabilidade cultivar esse amor. Viver sem ser amado é a coisa mais triste que eu posso imaginar. Mesmo se você estiver à beira da morte numa cama de hospital e tiver alguém do seu lado, segurando a sua mão, isso ainda é melhor do que não ser amado.

No meu novo trabalho eu conheci uma mulher que não é amada – ou pelo menos aparenta não ser. Ela tem uma história frustrante: fracassada profissionalmente, frustrada como mãe, incapaz de lidar com pessoas e agarrada a ideais que não lhe cabem. Sinto que fui mais um a atirar-lhe uma pedra, mas isso foi fruto da minha imaturidade, fruto do meu medo e da minha intolerância. Ela também vive assombrada por um medo bastante específico: o medo de essa vida passar e ela não realizar nada que mereça ser lembrado. Medo esse, partilhado por mim.

Estou vivenciando uma fase que gostaria de chamar de o desvio do sonho. Acredito que é a segunda vez que isso acontece. Mas, ao contrário da primeira, pelo menos que eu me lembre, dessa vez não é uma escolha minha. Quando era criança, queria ser paleontólogo. Quem me conhece desde aquela época sabe o quanto eu era fascinado por dinossauros. Paleontólogo é uma palavra e tanto para um menino de doze anos. Mesmo sendo o esquisito da escola, ainda hoje eu tenho orgulho do menino estudioso e inteligente que fui. No meio do caminho isso se perdeu. Comecei a desenhar os dinossauros e desenhei tanto que comecei a me interessar mais por isso do que pela ciência em si. A arte começava então a entrar em minhas veias e foi assim que perdi o rumo do meu primeiro sonho. Cerca de cinco anos depois eu já não me lembrava mais a que período da era mesozoica pertencera o Pachycephalosaurus, mas sabia quais eram as principais obras do estúdio de mangás CLAMP. Foi nessa época em que eu comecei a estudar inglês, e foi na sala de aula do CCAA onde eu decidi virar professor desse idioma. O final do ensino médio coincidiu com as minhas primeiras produções literárias, por assim dizer. Minha sensibilidade artística se dividia entre as ilustrações e as narrativas do texto escrito, o que despertou meu interesse por quadrinhos. Mas foi a leitura dos sete volumes da série Harry Potter e o meu gosto por inglês que me fizeram optar pelo curso de Licenciatura em Letras. BAM! Segundo sonho deixado em modo de espera. Dez anos depois estou eu aqui, vivendo dos meus salários como professor, vendo-me forçado a não desenhar, porque simplesmente não consigo mais produzir nada de tão cansado que estou.

As voltas do mundo me levaram de volta ao CCAA, agora como professor em treinamento, concorrendo a uma vaga na escola de idiomas que mudou a minha vida. Foi preciso isso para que eu conhecesse uma amiga que me diria: “Eu não queria dar aula, mas foi com o inglês que eu consegui tudo o que tenho hoje. Não queria ser professora de jeito nenhum, mas aprendi a dar valor a isso”. Bom. Acho que é hora de admitir que a vida tem me dado todos os sinais necessários, tem literalmente jogado na minha cara qual o caminho a seguir. Viver de arte no Brasil é aquela coisa que todo mundo já sabe. Me dói demais ter que matar isso dentro de mim, mas não vejo alternativa.


Acesso à Penseira


A vida deu um salto desde a última vez que escrevi algum texto reflexivo. O fundamento desses textos, a princípio, era que eu tirasse algumas coisas da minha mente, de modo que pudesse olhar para elas de fora e analisa-las melhor – assim eu pensava. Bom, fosse esse o resultado ou não, a coisa funcionava de alguma maneira e me deixava mais leve. Além disso, eu praticava a escrita. Desde 2005 eu estou nessa de analisar minha mente. Tem sido bom. No período de 2012 até 2015, se não me falha a memória, escrevi no Eu podia estar bebendo, um blog meio pesado que usei para acompanhar como ia a minha depressão. Os textos lá são de altíssimo nível, mas muito tristes. Depois que melhorei, montei o Minhas Drogas – Esse era bem mais leve e tinha textos bastante interessantes. Eu me sentia muito bem escrevendo lá, fazendo análises e traduções e tudo que eu gostava. Então eis que ontem à noite me vi relembrando as espirais de ideias que motivavam os textos que eu escrevia no Eu podia estar bebendo só porque briguei com R. (meu marido).

Eu sempre gostei de escrever, estive pensando em montar uma história ou coisa do tipo. Rever as anotações sobre Oak School – um romance que criei nos primeiros anos da universidade (2010-2011) – me deixou nostálgico. Fiquei muito orgulhoso do meu potencial criativo na época. Aconteceu de eu não me reconhecer naquele texto, coisa que eu considerei positiva porque a maioria dos meus textos é bastante pessoal e aquele tinha toda a estrutura de um best-seller. Enfim, quando comecei a escrever meus diários, a minha ideia era que uns dez, quinze anos depois eu voltaria a eles como leitor e teria uma noção do meu amadurecimento. Isso realmente aconteceu: em 2016 eu fui lá e reli algumas páginas do diário de 2006. O eu de 26 anos lendo sobre a vida do eu de 16. Confesso que fiquei bastante preocupado com meu estado mental da época. É impressionante como a adolescência é dura! É igualmente impressionante como a vida adulta apaga essas memórias. Assim, percebi que uma coisa que conquistei com o passar dos anos foi a serenidade, ou seja, a capacidade de se colocar num estado de calma induzida para não enlouquecer diante das coisas que inevitavelmente vão acontecer na nossa vida. Mas e agora? Que registros eu tenho desde os últimos dois anos para quando eu tiver uns 40? Que tipo de jovem adulto eu vou me lembrar que eu era? Eu quero muito esse retrato porque, melhor que uma foto, o diário tem uma profundidade dramática muito interessante.

Esse blog constitui uma parte importante da minha produção. Aqui está registrado em forma de textos um status da minha visão de mundo e sensibilidade em um nível de fácil digestão. Estou feliz por voltar a escrever aqui.



Originalmente publicado em 18/Jan/2018