sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Billy no ônibus






Pá! Você pisca os olhos e dá de cara com uma página cheia de letras que, sem que se perceba, deverão sumir e se transformar em imagens, isto é, se o texto for bem escrito. Fico na torcida para que dê certo.

Vamos lá, respire fundo.

Neste momento há um rapaz num ônibus, cheio, mas não lotado. Ele está de pé, olhando pela janela com os fones do celular nos ouvidos e o volume está no máximo. Ele olha pela janela, mas para nada em particular. Suas retinas captam o que passa, mas sem registrar nada. O trajeto é percorrido lentamente, de modo que ele poderia aprender o caminho mesmo que esta fosse sua primeira viagem – não é novidade a lentidão dos ônibus, ainda mais, como é o caso, na hora do rush –, mas o rapaz em questão só está ali fisicamente. O cérebro humano tem a fantástica propriedade de, com o passar do tempo e a repetição de certas atividades, não registrar mais as experiências que são muito parecidas para poupar espaço na memória que, em tese, estaria reservado para lembranças relevantes[1]. Isso confunde pra caramba a nossa noção de tempo, mas, felizmente, para o rapaz de quem falamos aqui, esse streaming mental abre espaço para uma coisa maravilhosa chamada abstração. A negligência das responsabilidades, o tempo perdido (roubado?) pelo deslocamento em transporte ineficiente e a música são favoráveis à abstração e fazem da mente o ambiente perfeito para a imaginação – e Billy, como vamos chamá-lo, adora divagar até se perder em pensamentos, deixando as ideias voar livremente para onde quiserem. Assim, sendo suas viagens de ônibus frequentes e penosas, ele desenvolveu (chame de mecanismo de defesa ou escapismo, vai dar no mesmo) a habilidade de baixar as cercas da mente que o prendem à realidade e, para o bem do que fosse, transformou esses momentos em lazer.

Billy gosta muito de ler também. Inclusive, está com um livro na mochila agora mesmo – como sempre estivera. Mas só lê sob determinadas condições: quando está sentado e há o mínimo de silêncio para que aquela voz na cabeça se faça ouvir, permitindo assim que as palavras se projetem lá dentro com força suficiente para se transformar em imagens, sons e cheiros. Por falar nisso, os sons e cheiros dos ônibus são bem peculiares[2], não é? Billy sabe, mesmo sem nunca ter pensado a respeito, que a leitura o levaria (e como levaria!) muito mais longe do que qualquer ônibus. Por isso lê tanto. Mas tanto quanto mergulhar em histórias prontas, ele se delicia ao desenvolver as suas próprias – e aqui voltamos à abstração. Vejam, estamos falando de uma pessoa que adora os próprios pensamentos, muito mais que falar ou até mesmo escrever[3]. Esse rapaz também vive a realidade, ainda que em segundo plano, mas o que lhe dá prazer mesmo é viajar (mentalmente) e sonhar – outra grande paixão sua!

Muitas narrativas florescem na cabeça de Billy. E mesmo que ele não as considere dignas de vir a público, nos valeremos aqui de recursos especiais (e mágicos) da literatura para acessá-las com considerável liberdade. O processo imaginativo de Billy – e pode ser que o seu também – se dá através de uma rápida e fluida rede de associações que, justamente por não encontrar barreiras, tendem a fluir nas mais variadas direções e expandir-se até que tomem outro rumo – muitas vezes bruscamente, como uma vertiginosa curva de montanha russa.

Tsssssss! Prá! As portas de entrada e saída são abertas e essa grande máquina-monstro que é o ônibus começa a engolir e dejetar gente indigesta que se acotovela no corredor, deslizando sem lubrificação de um orifício a outro. Não é atoa, pensa Billy, que o ônibus se queixa e sacoleja tanto. Por que as pessoas não podem simplesmente entrar e se acomodar pacificamente, sem causar tanto estardalhaço?[...]
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[1] Muito embora os critérios do cérebro para determinar a relevância das memórias pareçam, muitas vezes, completamente aleatórios.

[2] Motor, vozes na forma de todo tipo de bobagem – geralmente femininas – e combustível queimado. Vez por outra há também algum passageiro com um aroma distinto (no bom ou mau sentido) ou com uma propensão a chamar mais atenção do que normalmente se deseja por alguma causa “maior” ou coisa que o valha.

[3] O que nos leva a pensar que sua personalidade é revestida de certo egoísmo, uma vez que ele dispunha de algo que considerava bom, que era abundante, mas relutava em compartilhar.