Certa noite, após um longo período de
calor impiedoso, choveu. Infelizmente, para Emily Sol, o clima foi suficiente
para suas duas melhores amigas cancelarem o passeio na orla pelo qual a garota
aguardara ansiosamente uma semana inteira. Aborrecida, ela jogou na cama o
celular onde jazia a mensagem de cancelamento não respondida. O aparelho quicou
no colchão e tentou suicídio, espatifando-se no chão, provavelmente cheio de
remorso por sua dona descarregar nele injusta e exageradamente a raiva que
sentia no momento. Não conseguia evitar aquele tipo de reação, especialmente no
auge de sua adolescência e depois de tanta expectativa investida naquele rolé.
Ao devolver o vestido novinho, cuja
estreia estava reservada especialmente para aquele evento frustrado pela
crueldade arbitrária da natureza, Emily notou na parte de baixo do guarda-roupa uma
caixa diferente das outras, mas que ela conhecia muito bem.
Era ali que guardava os por ela chamados suvenires da vida: ingressos de cinema dos seus filmes favoritos ou filmes água com açúcar para os quais fora com rapazes por quem ela sentia certo apreço, pulseirinhas avulsas de boate, tampas de garrafa de cervejas que haviam regado conversas memoráveis, sua primeira carteira de cigarros, uma camisinha de uva que roubara da carteira de um ex-namorado com quem ela nunca passou do sexo oral, brincos cujos pares haviam sumido, mas que ela guardava na esperança de reaparecerem num futuro imaginado, uma mecha de cabelo cortada sem consentimento de uma ex-colega de classe como troféu de um desafio, e muitas eteceteras.
Apesar de inúmeros depósitos rápidos naquela
caixa, e de já vir fazendo isso havia um tempo considerável, Emily nunca se
detivera numa consulta a seu saldo de memórias. Tratava a caixa como um arquivo
morto, mesmo com os constantes acréscimos.
Sentou-se à escrivaninha e levantou a tela
do laptop. Enquanto o Windows iniciava com a lentidão habitual – cria ela ser
pela sobrecarga de arquivos, resultado de um backup que vinha adiando desde a
compra do computador –, Emily olhou pela janela a chuva cair como flechas
diagonais da gigantesca abóbada opaca que se fechava sobre a cidade de maneira
opressora. Pensou em como gostaria que aquela chuva parasse tão repentinamente
como havia começado. Depois se obrigou a pensar nos sem-teto, só pra não se
culpar porque ficar sem sair era a pior consequência daquele aguaceiro.
Quando finalmente o papel de parede de
Hora de Aventura apareceu na tela e os ícones piscaram, tudo o que ela tinha em
mente para despejar no Twitter sobre suas frustrações havia saído de sua
cabeça. Depois ela simplesmente baixou a tela e se jogou de costas na cama.
Seu corpo havia crescido mais rápido do
que os pais planejaram até a compra de uma nova cama, então alguma parte sempre
ficava de fora. Dessa vez foi a cabeça, que pendeu além da borda e a visão do
guarda-roupa de cabeça pra baixo entrou por suas retinas. A porta entreaberta
do móvel guardava uma escuridão atraente, como se levasse a um mundo além dos
casacos, tipo uma passagem brasileira para Nárnia.
A mente de Emily voou enquanto o sangue se
acumulava no cérebro mal posicionado, quando, do nada a porta se fechou sozinha
e ela soltou um grito.
– Deve ter sido uma brisa – disse a si
mesma.
Então decidiu se levantar e ir lá fechar a
tal porta de uma vez para que ela não ficasse batendo, assustando-a a noite
inteira. Uma coisa patética, até porque se
por acaso houvesse alguma coisa ali, ou teria entrado ou sairia de uma vez,
ao invés de ficar enchendo o saco com um bate-bate infernal só para
aborrecê-la. Emily achava um absurdo como os poltergeists eram retratados nos filmes, só fazendo idiotices como
apagar luzes, ficar zanzando pela casa ou atirar coisas nas pessoas.
Ao levantar, espetou o pé em alguma coisa
no tapete felpudo e, depois de um segundo grito, porém não menos ruidoso,
equilibrou-se precariamente no pé saudável para encontrar um brinco fincado no calcanhar
dolorido.
Seu coração se encheu com a esperança de
ter encontrado o par perdido de algum de seus brincos, então mancou até a caixa
de suvenires e pouco depois já estava de volta à cama com o objeto no colo,
onde começou a catar atentamente os acessórios solitários que vagavam nos lugares
de mais difícil acesso, tal era sua vontade coletiva de sumir também.
– Emily! – chamou sua mãe, simultaneamente
abrindo a porta do quarto e entrando (uma ação para cada sílaba do nome da
filha). – Está tudo bem? Eu ouvi gritos...
– Está, mãe. Relaxe.
– Tá fazendo o que?
– Procurando um brinco aqui.
– Quer ajuda?
– Nam,
valeu. Eu me viro aqui, pode deixar.
– Você vai jantar agora? Seu pai ainda
está comendo e quando ele terminar eu vou lavar a louça. Se você for comer
depois vai ter que deixar a cozinha do mesmo jeito porque eu já estou cansada
de você fazer isso toda noite. Aliás, eu deveria colocar você pra lavar a louça do jantar porque não sou só eu quem suja...
– MÃE! EU TÔ TENTANDO ME CONCENTRAR AQUI!
– Estão brigando? – quis saber o pai de
Emily, colocando a cabeça porta adentro.
– Ela está toda nervosinha porque não vai
sair. É melhor ficar em casa mesmo, minha filha, se conforme. O mundo está
muito perigoso.
– VALEU MÃE, eu já tinha até esquecido,
mas a senhora me fez o FAVOR de me lembrar. Obrigada!
– Não fale assim com sua mãe, Emily, ela
está certa.
– Viu? Seu pai concorda comigo!
Emily teve que rir da própria mãe. Desde
quando ela estava disputando o apoio de seu pai com ela? – Ok, gente – colocou
a caixa de lado e levantou mais uma vez. – Está na hora de vocês irem pro seeeu quartoooo! Eu prometo que se ficar
com medo dos trovões vou pra cama de vocês, tá? Boa noite. Tchau. Beijo!
Depois de finalmente fechar a porta,
enxotando o casal, Emily se voltou para a caixa sobre sua cama e pôs-se
novamente a investiga-la.
Dessa vez ela virou a caixa, derramando
tudo no espaço em V entre suas pernas. Em meio a cartinhas, chaveiros encardidos,
tazos, cartas de Pokémon e cartelas de adesivos incompletas (os que faltavam
estavam colados em ângulos estranhos nas paredes internas da caixa ou grudando
itens aleatórios por ali), um volume mais pesado emergiu.
– Meu diário! Oh meu Deeeeus!!! – Seus
batimentos cardíacos aceleraram à medida que as lembranças do conteúdo daquelas
páginas vinha à tona: detalhes sobre sua estada na casa da tia Eloísa, dois
anos antes.
Como havia esquecido daquilo? Aquele
diário abrigava uma Emily que ela já não era mais, mas de quem sentia muitas
saudades.
Então um forte impulso se apoderou dela,
fazendo-a abrir ansiosamente o caderno enfeitado e ainda (!) perfumado, e
deslizando os olhos na primeira página, leu:
2008, o melhor ano da minha vida! Por Emily Sol
Leia meu comentário sobre esse texto aqui.
Ficou diferente de tudo que li teu, não perdeu a marca do detalhismo, porem ta mais enxuto, objetivo e claro. Ficou massa boy, pelo menos ate então.
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