sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Billy no ônibus






Pá! Você pisca os olhos e dá de cara com uma página cheia de letras que, sem que se perceba, deverão sumir e se transformar em imagens, isto é, se o texto for bem escrito. Fico na torcida para que dê certo.

Vamos lá, respire fundo.

Neste momento há um rapaz num ônibus, cheio, mas não lotado. Ele está de pé, olhando pela janela com os fones do celular nos ouvidos e o volume está no máximo. Ele olha pela janela, mas para nada em particular. Suas retinas captam o que passa, mas sem registrar nada. O trajeto é percorrido lentamente, de modo que ele poderia aprender o caminho mesmo que esta fosse sua primeira viagem – não é novidade a lentidão dos ônibus, ainda mais, como é o caso, na hora do rush –, mas o rapaz em questão só está ali fisicamente. O cérebro humano tem a fantástica propriedade de, com o passar do tempo e a repetição de certas atividades, não registrar mais as experiências que são muito parecidas para poupar espaço na memória que, em tese, estaria reservado para lembranças relevantes[1]. Isso confunde pra caramba a nossa noção de tempo, mas, felizmente, para o rapaz de quem falamos aqui, esse streaming mental abre espaço para uma coisa maravilhosa chamada abstração. A negligência das responsabilidades, o tempo perdido (roubado?) pelo deslocamento em transporte ineficiente e a música são favoráveis à abstração e fazem da mente o ambiente perfeito para a imaginação – e Billy, como vamos chamá-lo, adora divagar até se perder em pensamentos, deixando as ideias voar livremente para onde quiserem. Assim, sendo suas viagens de ônibus frequentes e penosas, ele desenvolveu (chame de mecanismo de defesa ou escapismo, vai dar no mesmo) a habilidade de baixar as cercas da mente que o prendem à realidade e, para o bem do que fosse, transformou esses momentos em lazer.

Billy gosta muito de ler também. Inclusive, está com um livro na mochila agora mesmo – como sempre estivera. Mas só lê sob determinadas condições: quando está sentado e há o mínimo de silêncio para que aquela voz na cabeça se faça ouvir, permitindo assim que as palavras se projetem lá dentro com força suficiente para se transformar em imagens, sons e cheiros. Por falar nisso, os sons e cheiros dos ônibus são bem peculiares[2], não é? Billy sabe, mesmo sem nunca ter pensado a respeito, que a leitura o levaria (e como levaria!) muito mais longe do que qualquer ônibus. Por isso lê tanto. Mas tanto quanto mergulhar em histórias prontas, ele se delicia ao desenvolver as suas próprias – e aqui voltamos à abstração. Vejam, estamos falando de uma pessoa que adora os próprios pensamentos, muito mais que falar ou até mesmo escrever[3]. Esse rapaz também vive a realidade, ainda que em segundo plano, mas o que lhe dá prazer mesmo é viajar (mentalmente) e sonhar – outra grande paixão sua!

Muitas narrativas florescem na cabeça de Billy. E mesmo que ele não as considere dignas de vir a público, nos valeremos aqui de recursos especiais (e mágicos) da literatura para acessá-las com considerável liberdade. O processo imaginativo de Billy – e pode ser que o seu também – se dá através de uma rápida e fluida rede de associações que, justamente por não encontrar barreiras, tendem a fluir nas mais variadas direções e expandir-se até que tomem outro rumo – muitas vezes bruscamente, como uma vertiginosa curva de montanha russa.

Tsssssss! Prá! As portas de entrada e saída são abertas e essa grande máquina-monstro que é o ônibus começa a engolir e dejetar gente indigesta que se acotovela no corredor, deslizando sem lubrificação de um orifício a outro. Não é atoa, pensa Billy, que o ônibus se queixa e sacoleja tanto. Por que as pessoas não podem simplesmente entrar e se acomodar pacificamente, sem causar tanto estardalhaço?[...]
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[1] Muito embora os critérios do cérebro para determinar a relevância das memórias pareçam, muitas vezes, completamente aleatórios.

[2] Motor, vozes na forma de todo tipo de bobagem – geralmente femininas – e combustível queimado. Vez por outra há também algum passageiro com um aroma distinto (no bom ou mau sentido) ou com uma propensão a chamar mais atenção do que normalmente se deseja por alguma causa “maior” ou coisa que o valha.

[3] O que nos leva a pensar que sua personalidade é revestida de certo egoísmo, uma vez que ele dispunha de algo que considerava bom, que era abundante, mas relutava em compartilhar.


terça-feira, 2 de setembro de 2014

Epifania de um menino

Abro a torneira da pia do quintal e fico olhando a água encher a bacia. São dez da manhã de um dia de verão e eu estou de férias. Acordei às oito e tomei café assistindo desenho, mas como já acabou, decidi vir brincar. A bacia é meio grande, verde e a água reflete uns cacos de luz do sol ao ondular enquanto eu, com certo esforço e medo de derramar tudo, tiro-a dali para o chão.
Nela coloco meus brinquedos: uns cinco dinossauros, um homem-aranha, dois carrinhos e uns dez soldadinhos verdes.
Fico intrigado com o fato de alguns boiarem e outros não. Os que boiam eu empurro para baixo e eles emergem novamente, oscilando na superfície. Sorrio. Brinco um pouco com eles ali, simulo lutas e faço todas as vozes e efeitos sonoros do filme que se desenvolve na minha cabeça. É mágico: nesse momento tudo na vida é só isso.

Boysinha no busú

Estou num demorado ônibus a caminho do trabalho, no maior desconforto e sacolejo pela via mais distante rumo ao meu destino. Porém essa não é a pior parte da viagem. A coisa que torna mais difícil a minha permanência nesse coletivo é a presença de uma criatura do sexo feminino que insiste em falar extremamente alto. Ela tem uma aparência que muito me desagrada e está estigmatizada pelos ideais locais de como uma "boysinha que bota moral" é. Tudo nela vai contra o que eu acredito, eu abomino todas as suas características. Ela pode até ser uma boa pessoa, não é de caráter que falo aqui. É do seu comportamento reprovável, sua linguagem corporal ofensiva, seu discurso carregado de humor infeliz e sua postura sem um pingo de nobreza. Isso gera em mim uma forte aversão, praticamente instantânea. O conflito que resulta da minha negação é o que me angustia. Ela não me faz nada de mal diretamente. Eu que o faço, ao estipular ideais de comportamento para as pessoas. Mas mesmo isso não é gratuito. Eu poderia não desgostar da jovem, poderia até mesmo acha-la o máximo e que ela vale tanto quanto pensa. Poderia se não conhecesse nada além disso. O problema é que eu já estive exposto a garotas que eu realmente achei bonitas e bem comportadas. Garotas cujas palavras e senso de humor perfumam o ar. Cujas roupas são um deleite para os olhos. A verdade, se o leitor ou a leitora me permite, é que eu estou decepcionado e triste por esta garota da periferia ferir os meus ideais. Meu desprezo vem do incômodo que é transitar entre as distintas atmosferas em que habito: conforto e miséria, cultura e ignorância, cool e trash. Vem da dificuldade em lidar com as diferenças, com o que não está ali para me agradar, com aquilo cuja existência independe da minha e, o mais doloroso: com aquilo que eu não posso controlar. Essa sensação de falta de controle, de estar diante de algo selvagem, amedronta-me, ameaça-me a integridade. Meu mecanismo de defesa não poderia ser mais estúpido: eu tento inferioriorizá-la socialmente dentro da minha cabeça para que possa me sentir soberano. Ela vai descer do ônibus a qualquer momento e seguir sua vida à sua maneira, fazer tudo o que eu jamais faria, inclusive, quem sabe, ser feliz sem se importar com qualquer merda que possam pensar de ela.

Meu problema em falar sobre política

Não é de hoje que eu fujo de conversas sobre política como o diabo foge da cruz. Esse assunto figura entre os meus "proibidões", meus "tabus voluntários", como futebol, religião, sociedade e trânsito. Não é por não gostar ou não falar que eu não pense sobre eles, muito pelo contrário. Eu penso neles e muito! Mas conversar... Detesto esses assuntos porque trata-se de momentos em que, ao invés de se falar pensando coletivamente, as pessoas assumem uma postura individualista, querendo impor suas opiniões como uma verdade absoluta.

É especialmente na política que essa característica do discurso se mostra mais presente para mim - e não poderia ser diferente! Ora, os políticos querem defender seus ideais, os eleitores querem um representante com quem eles se identifiquem, então uma coisa puxa a outra. Mas o problema é que, como já falei, eu não vejo, da parte de ninguém, um pensamento coletivo.

Eu não entendo de política. Não faço a menor questão de entender. Isso porque a coisa é tão complexa que chega a sobreviver de si mesma e eu, um simples cidadão e eleitor forçado, vejo-me exposto a conversas completamente desinteressantes, com discursos que vem sendo repetidos, reproduzidos sabe-se lá desde quando, como se ouvisse uma conversa por telefone entre desconhecidos.

Nessa época, o meu maior desejo é sumir desse país. Esse povo briga, então vota, faz festa e chora quando elege, depois passa o mandato inteiro reclamando, xingando e, nas eleições seguintes, faz tudo novamente! Eu não aguento mais essa babaquice!

Por mais que tente me isentar, em todos os lugares que frequento (exceto na sagrada casa de minha mãezinha querida) esse assunto impera e me ataca. Eu não me importo com quem ganha ou deixa de ganhar! Se eu não levantar minha bundinha da cadeira e não for trabalhar e estudar, minha vida não melhora nem 0,0000000000001%, e não é por causa do governo que vai melhorar!

Todos os candidatos à presidência são horríveis! São loucos! Diante de péssimas opções, o que eu posso fazer? Votar, como todos dizem, no "menos pior". Por isso, não vejo a hora de essa palhaçada que chamam esquizofrenicamente de festa da democracia acabar!

Deixo aqui registrados os meus sentimentos. Que droga. Por favor, me desculpem.



sexta-feira, 8 de agosto de 2014

"As time goes by"



Deus, como eu quero voltar a ser criança! Não se trata de nostalgia ou complexo de Peter Pan. O fato é que a vida adulta é demasiado tediosa e fatigante, além de carecer de mágica. Não há mais Digimon em manhãs quentes, refrescadas com guaraná, ou Harry Potter em tardes de férias, com meu irmão e meu primo tão encantados quanto eu diante da televisão. Cara! Como eu viajava nessas histórias! Eu fui uma criança muito introspectiva. Sempre fixava num único ponto no meu campo visual e ali mergulhava, desbravava os detalhes e esquecia todo o resto, como uma poça no chão que refletia o céu e ao mesmo tempo revelava seu fundo, e como poderia ser aquilo um mar para formigas, um lago para meus dinossauros de brinquedo. Meu pensamento voava! Tudo me era maravilhoso, fantástico. Eu era um menino poeta. Tudo tem uma beleza própria, se bem observado.

Hoje, na pele de adulto, eu não perdi a capacidade de introspecção, a imaginação ou tampouco a minha percepção diminuiu, muito pelo contrário: estou mais afiado que nunca. E isso é o que me irrita mais. Nós não perdemos a fé na magia, perdemos, simplesmente, o tempo para ela. Eu tenho memórias extremamente nítidas da infância (mesmo hoje, aos 25!) porque, quando criança, a cada experiência eu dedicava intermináveis momentos de revisão e reflexão. Muitas dessas constituem meu imaginário, e inúmeros elementos do meu dia me remetem aos meus anos infantes, quando tudo era novidade e tão intensamente vivido. Hoje, infelizmente tudo tem que ser efêmero, tudo passa por mim com pressa: imagens, lugares, pessoas, filmes, livros... sempre há uma pilha de coisas esperando para ser feita e a consciência disso me tira o foco, o foco profundo de antigamente, das coisas do aqui e agora. É detestável estar sempre jogando um pé para frente.

Trata-se das lembranças de um sonho. Tentar viver hoje com a intensidade que eu vivi na infância – sem o dinheiro, sem o álcool, sem o café nem os relacionamentos – é tão impossível quanto tentar cantar uma música que eu só ouvi num sonho. É tudo sonho. Quando eu estiver na minha quarta digievolução (a velhice), é assim que me lembrarei das anteriores: como sonhos. E como eu amo sonhar! Depois de um dia de trabalho, eu não deito para descansar. Não é para recuperar as energias e conseguir repetir o feito no dia seguinte. Nada disso. Eu me deito é para sonhar. É nessa hora, entre a consciência e a inconsciência, que eu sinto o tecido da realidade se desfazendo e meu corpo encolhendo. A barba entra no rosto, as orelhas voltam a ser de abano e os dentes encolhem e se afastam. Em apenas alguns minutos o pequeno eu está ali, de volta, e é quando tudo finalmente faz sentido.

domingo, 1 de junho de 2014

Mixtape: 25th


Eis a mixtape comemorativa do meu 25th birthday! Essa ficou a mais legal de todas (mentira, não sei qual a melhor, mas essa ta TOPS). Feita em 2 horas e com muito amor, agora no YouTube, onde logo postarei as outras. As músicas desta mixtape variam entre clássicas de quando eu comecei a perceber música eletrônica (What else is there?) até lançamentos de meio segundo atrás (Do it again). Está neônica e linda!
Ah, e o download agora é via MediaFire!
:)

PLAYLIST:

1. Martin Solveig - The Night Out (Madeon Remix)
2. Deadmau5 - Raise Your Weapon (Madeon Remix)
3. Röyksopp - What Else is There? - (Thin White Duke Remix)
4. Van She vs. Avicii - Idea of Happiness / I Can Be the One (Black Boots Bootleg)
5. Röyksopp & Robyn - Do It Again (Zoo Station Remix) CLUB MIX


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domingo, 4 de maio de 2014

Emily Sol - Intro


Certa noite, após um longo período de calor impiedoso, choveu. Infelizmente, para Emily Sol, o clima foi suficiente para suas duas melhores amigas cancelarem o passeio na orla pelo qual a garota aguardara ansiosamente uma semana inteira. Aborrecida, ela jogou na cama o celular onde jazia a mensagem de cancelamento não respondida. O aparelho quicou no colchão e tentou suicídio, espatifando-se no chão, provavelmente cheio de remorso por sua dona descarregar nele injusta e exageradamente a raiva que sentia no momento. Não conseguia evitar aquele tipo de reação, especialmente no auge de sua adolescência e depois de tanta expectativa investida naquele rolé.

Ao devolver o vestido novinho, cuja estreia estava reservada especialmente para aquele evento frustrado pela crueldade arbitrária da natureza, Emily notou na parte de baixo do guarda-roupa uma caixa diferente das outras, mas que ela conhecia muito bem.

Era ali que guardava os por ela chamados suvenires da vida: ingressos de cinema dos seus filmes favoritos ou filmes água com açúcar para os quais fora com rapazes por quem ela sentia certo apreço, pulseirinhas avulsas de boate, tampas de garrafa de cervejas que haviam regado conversas memoráveis, sua primeira carteira de cigarros, uma camisinha de uva que roubara da carteira de um ex-namorado com quem ela nunca passou do sexo oral, brincos cujos pares haviam sumido, mas que ela guardava na esperança de reaparecerem num futuro imaginado, uma mecha de cabelo cortada sem consentimento de uma ex-colega de classe como troféu de um desafio, e muitas eteceteras.

Apesar de inúmeros depósitos rápidos naquela caixa, e de já vir fazendo isso havia um tempo considerável, Emily nunca se detivera numa consulta a seu saldo de memórias. Tratava a caixa como um arquivo morto, mesmo com os constantes acréscimos.

Sentou-se à escrivaninha e levantou a tela do laptop. Enquanto o Windows iniciava com a lentidão habitual – cria ela ser pela sobrecarga de arquivos, resultado de um backup que vinha adiando desde a compra do computador –, Emily olhou pela janela a chuva cair como flechas diagonais da gigantesca abóbada opaca que se fechava sobre a cidade de maneira opressora. Pensou em como gostaria que aquela chuva parasse tão repentinamente como havia começado. Depois se obrigou a pensar nos sem-teto, só pra não se culpar porque ficar sem sair era a pior consequência daquele aguaceiro.

Quando finalmente o papel de parede de Hora de Aventura apareceu na tela e os ícones piscaram, tudo o que ela tinha em mente para despejar no Twitter sobre suas frustrações havia saído de sua cabeça. Depois ela simplesmente baixou a tela e se jogou de costas na cama.

Seu corpo havia crescido mais rápido do que os pais planejaram até a compra de uma nova cama, então alguma parte sempre ficava de fora. Dessa vez foi a cabeça, que pendeu além da borda e a visão do guarda-roupa de cabeça pra baixo entrou por suas retinas. A porta entreaberta do móvel guardava uma escuridão atraente, como se levasse a um mundo além dos casacos, tipo uma passagem brasileira para Nárnia.

A mente de Emily voou enquanto o sangue se acumulava no cérebro mal posicionado, quando, do nada a porta se fechou sozinha e ela soltou um grito.

– Deve ter sido uma brisa – disse a si mesma.

Então decidiu se levantar e ir lá fechar a tal porta de uma vez para que ela não ficasse batendo, assustando-a a noite inteira. Uma coisa patética, até porque se por acaso houvesse alguma coisa ali, ou teria entrado ou sairia de uma vez, ao invés de ficar enchendo o saco com um bate-bate infernal só para aborrecê-la. Emily achava um absurdo como os poltergeists eram retratados nos filmes, só fazendo idiotices como apagar luzes, ficar zanzando pela casa ou atirar coisas nas pessoas.

Ao levantar, espetou o pé em alguma coisa no tapete felpudo e, depois de um segundo grito, porém não menos ruidoso, equilibrou-se precariamente no pé saudável para encontrar um brinco fincado no calcanhar dolorido.

Seu coração se encheu com a esperança de ter encontrado o par perdido de algum de seus brincos, então mancou até a caixa de suvenires e pouco depois já estava de volta à cama com o objeto no colo, onde começou a catar atentamente os acessórios solitários que vagavam nos lugares de mais difícil acesso, tal era sua vontade coletiva de sumir também.

– Emily! – chamou sua mãe, simultaneamente abrindo a porta do quarto e entrando (uma ação para cada sílaba do nome da filha). – Está tudo bem? Eu ouvi gritos...

– Está, mãe. Relaxe.

– Tá fazendo o que?

– Procurando um brinco aqui.

– Quer ajuda?

Nam, valeu. Eu me viro aqui, pode deixar.

– Você vai jantar agora? Seu pai ainda está comendo e quando ele terminar eu vou lavar a louça. Se você for comer depois vai ter que deixar a cozinha do mesmo jeito porque eu já estou cansada de você fazer isso toda noite. Aliás, eu deveria colocar você pra lavar a louça do jantar porque não sou só eu quem suja...

– MÃE! EU TÔ TENTANDO ME CONCENTRAR AQUI!

– Estão brigando? – quis saber o pai de Emily, colocando a cabeça porta adentro.

– Ela está toda nervosinha porque não vai sair. É melhor ficar em casa mesmo, minha filha, se conforme. O mundo está muito perigoso.

– VALEU MÃE, eu já tinha até esquecido, mas a senhora me fez o FAVOR de me lembrar. Obrigada!

– Não fale assim com sua mãe, Emily, ela está certa.

– Viu? Seu pai concorda comigo!

Emily teve que rir da própria mãe. Desde quando ela estava disputando o apoio de seu pai com ela? – Ok, gente – colocou a caixa de lado e levantou mais uma vez. – Está na hora de vocês irem pro seeeu quartoooo! Eu prometo que se ficar com medo dos trovões vou pra cama de vocês, tá? Boa noite. Tchau. Beijo!

Depois de finalmente fechar a porta, enxotando o casal, Emily se voltou para a caixa sobre sua cama e pôs-se novamente a investiga-la.

Dessa vez ela virou a caixa, derramando tudo no espaço em V entre suas pernas. Em meio a cartinhas, chaveiros encardidos, tazos, cartas de Pokémon e cartelas de adesivos incompletas (os que faltavam estavam colados em ângulos estranhos nas paredes internas da caixa ou grudando itens aleatórios por ali), um volume mais pesado emergiu.

– Meu diário! Oh meu Deeeeus!!! – Seus batimentos cardíacos aceleraram à medida que as lembranças do conteúdo daquelas páginas vinha à tona: detalhes sobre sua estada na casa da tia Eloísa, dois anos antes.

Como havia esquecido daquilo? Aquele diário abrigava uma Emily que ela já não era mais, mas de quem sentia muitas saudades.

Então um forte impulso se apoderou dela, fazendo-a abrir ansiosamente o caderno enfeitado e ainda (!) perfumado, e deslizando os olhos na primeira página, leu:

2008, o melhor ano da minha vida! Por Emily Sol



Leia meu comentário sobre esse texto aqui.

Comentário sobre Emily Sol - Intro



Depois de um tempo amaldiçoado pelo terrível writer's block, decidi escrever qualquer coisa que viesse à minha cabeça. Essa estória de Emily surgiu quando eu voltava pra casa depois da universidade, e eu comecei a escrevê-la no celular, ainda no ônibus.

Nesse começo de conto (ou romance, quem sabe?) eu fui direto em cima das minhas fraquezas: trabalhar com uma personagem do sexo feminino - não tenho certeza se consegui escapar das garras dos estereótipos da adolescente de classe média, mas já falei: é uma fraqueza - e prolongar um pouco a ação antes de apresentar o desfecho da cena (do cancelamento do passeio até ela encontrar o diário).

Geralmente quando se escreve um conto, o autor já tem em mente o final, porque assim o enredo não se dispersa. É bem verdade que em determinado momento da trama os personagens ganham vida própria e aí começa o trabalho de deus do escritor. Pra mim isso é muito difícil, porque é como se você tivesse um segredo pra contar e tivesse que segurá-lo durante toda o desenrolar dos fatos. Os finais tendem a ser uma solução para os conflitos dos personagens, ou uma complicação para um nível maior - nesse caso a estória pede continuação e a solução é apenas superficial.

Outro problema que eu enfrento é a definição do público-alvo. Emily acabou ficando beeem ChicLit, então eu acho que quebrei dois tabus de gênero meus: o da protagonista (sexo feminino) e da escrita (comercial). Um detalhe é que optei pelo narrador câmera, em terceira pessoa. Autoras americanas de ChicLit geralmente escrevem em primeira pessoa porque acho que isso facilita (não num bom sentido) a empatia com as leitoras. Meu narrador tem acesso aos pensamentos de Emily, tem um discurso bem parecido com o dela (jovial e jocoso), mas simplesmente não é a voz na cabeça dela porque isso é muuuuito chato! Gosto que os leitores tenham a liberdade de erguer os olhos do texto e não tomarem um choque muito grande ao se verem em seus quartos pensando "Ah, eu não sou essa personagem".

No fim, acho que foi um bom exercício. Emily ficou leve, dinâmica e interessante. Não me detive em descrever sua aparência porque acho que cada pessoa gosta de dar uma de Deus no sexto dia com personagens de livros: criá-los à sua própria imagem e semelhança (espaço para reflexão sobre o que eu acabei de falar hahahaha). Gostei dela, de verdade.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

10 coisas para fazer antes de concluir o ensino médio [tradução]

Eu, mesmo já tendo terminado o ensino médio, achei fantástico o que é abordado nesse texto. Fiquei maravilhado com como a efervescência da adolescência é expressada e com a intensidade das coisas. Pessoalmente, me identifico muito com o que está escrito aqui, portanto, resolvi compartilhar com todos no Minhas Drogas.




Vá a uma festa e fique sóbrio. Ouça o modo como falam seus colegas de classe embriagados quando eles não têm planos de se lembrar de como foi a noite quando acordarem. Nunca fale sobre essas experiências, guarde-as apenas para você. Comece a dirigir pela rodovia em uma direção um dia, fingindo que você está fugindo. Ouça música pop ruim no máximo e cante junto. Pare nos subúrbios quando sua mãe te chamar de volta, mas compre um cupcake pro seu irmãozinho antes de dar meia-volta. Beije seu melhor amigo(a). Não importa o gênero ou a sexualidade de vocês. Não importa se for um selinho ou de língua. Vocês rirão disso mais tarde, mas a lembrança sempre fará com que você sorria. Fume um cigarro. Deixe que queime sua garganta. Deixe sair aquela tosse bem barulhenta. Apoie alguma coisa em que você acredita. Quando metade da escola rir de você, mantenha a cabeça erguida. Alguém concorda com você, mesmo que essa pessoa esteja assustada demais pra confessar. Faça inimigos. Cometa o tipo de erro que causa uma implosão na sua vida. Perca tudo e todos para esses erros. Somente quando você cair é que você vai ser capaz de se colocar de pé novamente. Sente-se no telhado de alguém e converse por horas. Esqueça sobre o jantar e conte as histórias da sua origem. Baixe sua guarda enquanto os cães latem lá embaixo. Converse sobre Deus. Ouça. Roube uísque do armário dos seus pais e esconda numa garrafa debaixo da pia do seu banheiro. Coloque uma dose no seu chá quando você achar que chegou ao fundo do poço. Jogue tudo pelo ralo quando ficar forte demais pra você. Torne-se um estereótipo. Compre um gravador e coturnos. Se vista todo de preto. Pinte o cabelo de azul claro e coloque três piercings na orelha. Não ligue quando as pessoas rirem de você. Faça pedidos às 11:11. Use seu pijama com a frente para trás na esperança de um dia de neve. Procure por respostas no fundo de uma garrafa. Finja que escrever coisas nos seus braços te torna especial. Acredite em alguma coisa. Acredite em tudo. Abra todos os livros e olhe em volta em cada esquina. Você não terá essa aparência, esses movimentos ou esses pensamentos nunca mais. Aproveite enquanto durar ou odeie cada segundo. Mas sinta. Sinta cada maldita coisa.

terça-feira, 29 de abril de 2014

Tradução: "Crane your neck" - Lady Lamb the Beekeeper

"Estique o pescoço"



recomendo a versão em estúdio

Eu pressionei minha orelha contra suas costas e nem fazia uma semana que nos conhecíamos
E eu senti seus batimentos cardíacos cair como pingos de chuva num balde
Eu já tive uma ótima espinha dorsal, mas eu a negligenciei um nome
Então toda vez que eu tentava ajeitá-la eu não conseguia sua atenção
E eu posicionei a palma da minha mão sobre sua clavícula
E desejei adormecer no fundo da sua medula

Com a gentileza de um rato encolhido como uma bola
Com a gentileza de um rato até amanhã

Nós arrancamos nossas roupas, inclusive todas as nossas joias
E nós corremos de mãos dadas na época em que você trouxe à tona a fera em mim
As partes que estão dormentes, eu desejo libertá-las
E na claridade dessa noite eu me faço acreditar que eu posso dormir facilmente sozinha
Mas há uma fome sob minha pele e ela está agarrada aos meus ossos
Há uma fome de leão e ela está se alastrando pelos meus ossos
Então eu jogo meus membros pra frente feito uma árvore numa tempestade
E ando até minha cozinha e me prostro na janela

Estou calma como um carneirinho sendo guiado
Estou azul como sangue antes do sangue ficar vermelho


E como isso dói mesmo ao sol
É uma maldita piada como conseguimos nos machucar mesmo ao sol
Pois um coração bate o melhor possível numa cama, ao lado de quem ele ama
Ah, é, um coração bate o melhor possível quando, na cabeça, a morte se torna irrelevante
Porque se você está sonhando com sua morte, então você realmente não está vivendo, meu bem
Você tem que estar esfomeado, tem que estar esfomeado pra isso
E se você chora noite adentro, ao sol é melhor você erguer essa cabeça

Gire seus quadris, estique o pescoço
Dobre seu corpo pra trás

Você tem que estar esfomeado, tem que estar esfomeado pra isso

Tradução livre

domingo, 27 de abril de 2014

Auto-crítica de domingo


O acúmulo de pensamentos não resolvidos da semana que passou me deixou extremamente ansioso. As ações não concluídas e resultados a chegar também. Em meio a esse tipo de turbulência eu fico louco, desesperado. Eu quero fugir, quero uma solução imediata. Eu esqueço o que me falta e não consigo agir. Apesar de empurrar os dias com a barriga, não consigo evitar certo sofrimento. Eu me cobro demais, mas fecho os olhos para meus próprios reclames. Fico pensando em como a vida poderia ser diferente se eu tivesse tomado as decisões certas - se é que eu tomei as erradas. Danço uma valsa perigosa com as sombras de um futuro melhor, mas logo dou de cara na parede. Eu protelo e desperdiço até ficar sem tempo. Eu quero prazer, mas não faço por merecer. Produzo menos do que consumo e isso é um desfalque, um boicote a mim mesmo. Desgostosa com o presente, minha mente se agarra ao passado. A memórias criadas. Passo horas entorpecido me lembrando do que não foi. Ando relapso sobre o que quero, posso e devo fazer. Algumas poucas coisas nas quais invisto certa energia, eu faço muito bem. Mas a carência de novidades é mais um dos buracos. Eu preciso "de um retoque total". Ganhar peso, estudar mais, passar menos tempo na Internet e cumprir meus prazos. Preciso me recompensar menos pelo que eu não faço e me punir menos ainda pelo que eu deixo de fazer. Preciso lembrar, de vez em quando, que eu tenho superpoderes. Mas isso, como todos os outros primeiros passos, devem ficar pra segunda-feira.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

E a vida [acadêmica] continua!



Numa manhã dessas de volta à universidade, início de período, eu me deparo com tudo, menos animação. Isso mesmo: sem os feras, trote, ou os grupinhos perdidos que eles formam, aquele lugar adquiriu um ar de mausoléu. Mas mesmo num cemitério há flores. Há os velhos amigos, entre mortos e feridos (estando eu na segunda categoria), sempre que reacendem-se cigarros e conversas pra lá de frutíferas e filosóficas - um apelido carinhoso para "viajosas", nas quais pontos de vista são expostos em debates calorosos demais e acadêmicos de menos. Uma delícia com café. Somos todos jovens e achamos nossos fardos pesados demais, mas queremos demonstrar que os carregamos muito bem. Há maneiras bem especiais para lidar com eles.

Na sala de aula, respostas que, apesar de bem conhecidas teimam em sair diante da falta de empolgação evidente dos mestres - fator agravado pela consciência de estarmos numa segunda-feira.

domingo, 13 de abril de 2014

Uma coisa que eu escrevi voltando pra casa num domingo de manhã


A volta pra casa de manhã após uma noite longa quando seus limites foram testados é algo que eu conheço muito bem. Entre as várias coisas que eu poderia ter feito, as que atestam meu sucesso são as que eu não fiz. Estou jogando com a diversão sóbria, com a socialização seletiva e a honestidade comigo mesmo. Tolero a realidade, e até perdoo-a por não ser como eu queria, então fica fácil andar pela cidade noite adentro sem medo de fantasma. Despido das cascas de cebola, consigo entreter e seduzir. Assim vou avançando por conversas temperadas com desenvoltura e sem perder o charme. As comparações com meus antigos eus, espectros que povoam os bares onde fui em diferentes momentos da vida, são inevitáveis, porém divertidas. Por vezes escapam pela boca, mas em sua condição, esses assuntos não pertencem ao presente. No balanço do ônibus, continuo minha viagem pelo espaço-tempo enquanto minha casa se aproxima com ofertas irrecusáveis: cama, mesa e banho.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Pra fora da toca do coelho branco


À medida que estico um braço para o futuro, reviro-me dentro de minha casca de diamante e, sem querer, deixo escapar o eco de um sorriso cheio de pesar. Nunca imaginei que teria de lidar com uma ausência mais tangível do que o objeto que ela substitui: um ser que nunca foi. Ainda que a marca na pele – um X em alto relevo, mais rosado e brilhante que o resto – seja agora indolor, não pude evitar uma sensação de culpa por não vê-la mais sangrar. Um tipo internalizado de traição. Fútil e masoquista. Zonzo após o giro entre negações, desejos escancarados e a prática da indiferença, divirto-me com a ilusão de que as voltas estão chegando ao fim. Em meio às ações da auto-manutenção psicológica contínua, não me agarro mais a um nome e vértebras (estes agora desfeitos como a fumaça de um cigarro autografado por dois). Não há mais o que inalar. Trato de soltar. Largar o copo e me livrar do peso. Minha materialização neste plano está cada dia mais irreversível e já não sonho mais com tanta frequência. Motivações derivadas e destinadas ao real distanciam-se do ideal que já não é. Faço-me de brinquedo, deixo-me levar até ser puxado de volta por uma mola à qual meu tronco encontra-se preso. De volta à caixa com motivações circenses; um mundinho à parte que uma em sete vezes me basta, me renova. Não há mais palavras de areia movediça, tampouco.

Imagem: Never Let Go by ReyeD33

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Sinestesia Fantástica



Mesmo imerso num mar de incertezas, ao passo que as cinzas são varridas de minhas penas pelo vento, como uma mariposa à noite, vejo-me atraído por uma luz azulada que poderá me eletrocutar. Mas talvez não seja noite. Talvez eu esteja em uma caverna e esse brilho venha de uma fresta no teto pela qual poderei escapar. Devo ficar atento à presença de vento também. Minhas asas cansadas já não têm tanta sensibilidade.

Ah! Que sabor terá o ar quente do dia, depois de uma noite tão longa e gélida? Que promessas estarão codificadas nas nuvens? Eu quero essa chuva sobre mim. Sinto-me preparado para essa sinestesia fantástica! Ver o cenário se distorcendo a minha volta, cobrindo longas distâncias em alta velocidade, de braços abertos, indo e voltando... a sensação de que nada é impossível... o conforto de ver as novas folhas de um verde luminoso lançando sua sombra sobre as que secam ao chão, sendo absorvidas e se transformando em nutrientes...

É verdade que, num piscar de olhos estou de volta à escuridão. Mas esta não é mais completa. E mais: estou no meu caminho para longe dela.

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quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Uma noite a mais, um mal a menos

Dormir, mais uma vez, enfim. O desejado repouso mais que um alívio para o corpo que pesa irredutível sobre os ossos, é uma trégua de mim mesmo. Ando chato ultimamente, muito preocupado, exagerando em todas as doses, esquecendo-me da sagrada homeopatia. Temendo a sombra lançada pelo tsunami de expectativas sobre o mundo e sobre mim, vou me ajeitando de um lado para outro do colchão, esperando o universo escurecer e silenciar ao meu redor. A inconsciência é doce e breve. Mesmo sabendo que o sol virá para acabar com a minha festa no dia seguinte, não consigo evitar o mergulho – e que mergulho! – no meu mindinho de perfeição onírica. Jack Sawyer queria saber por que a vida tem sempre de exigir tanto e dar tão pouco. Partilho de sua dúvida, mas estou me colocando numa zona de conforto sob meus cobertores. Agora eu quero simplesmente parar de fazer a coisa que eu faço mais do que respirar e dizer até logo aos meus numerosos pensamentos. Porque nada se resolverá nem se complicará enquanto eu estiver na cama.