sexta-feira, 10 de maio de 2013

Poema: FREE


FREE

sinestesia, o sabor da noite que vem
                                                  ao sabor
do vento.
             meus pulmões inalam fogo
                                      exalam desejo
um prazer perfeito que nunca sacia completamente,
um fogo que é puro artifício
como é fácil se acostumar ao que é bom
                   música, síncope a teoria da lua
uma desculpa com um propósito – experiência
                                                             de vida?
                                                                 divina?
o beijo de uma rosa, eu:
                             um rouxinol
queria poder voar



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Texto: Gilson França, 2013
Imagem: le dormeur du val by ~gillesgrimoin

sábado, 4 de maio de 2013

Livro: Oak School - Prévia do capítulo 1




Certa manhã o sol reiniciou seu fastidioso percurso do horizonte ao leste até o outro lado da Terra sobre os telhados das casinhas padronizadas de Anverlin. Apenas diferençável das outras por características invisíveis a olhos forasteiros, a casa onde morava o órfão Tiago Tardelli estava prestes a se tornar um cenário de terror. Seus excessivamente gentis pais adotivos, mesmo inconscientes dos próximos eventos, estavam agindo de maneira mais estranha que o normal. Submerso na monotonia das férias de um garoto sem amigos, Tiago sustentava um olhar vago no telejornal matinal, sem expectativas para mais um longo dia, e o Sr. e a Sra. Roosevelt tentavam como podiam lidar com sua repentina condição:

- Não vai trabalhar hoje, meu bem?

- Ligaram da loja avisando que houve uma inundação. Parece que só vão terminar os reparos amanhã.

- Meu Deus! Pois hoje teremos um domingo forçado: todas as minhas clientes de massoterapia cancelaram.

- A gente podia almoçar fora. Ta afim, Tiago?

- Tanto faz.

- Acho melhor aproveitar a manhã livre pra cozinhar.

- A geladeira está cheia. Por que a gente não tenta dormir mais um pouquinho?

O ar parecia se recusar a circular pelos pulmões de Tiago quando ele levantou do sofá, deixando para trás sua forma suada em baixo relevo na almofada e um casal de meia-idade se abraçando. Eles dois eram mestres em lidar com as inadequações da idade do garoto. Tinham uma filha biológica que acabara de sair dessa fase, por isso já não estavam nem aí para seus chiliques silenciosos.

Preso em casa com eles, Tiago só podia pensar em onde estaria Cheryl, a tal filha dos Roosevelt. Ela tinha virado hipster, como dizia. Uma espécie hype de hippie. Ao invés de andar com ela e tentar se enturmar, Tiago hesitava diante da janela, diante de tudo. Esperava inconscientemente que algo acontecesse para mudar sua vida.

Pois então, naquele dia sua espera terminou.

Às nove da noite, quando o silêncio das vozes das pessoas, dos pássaros e dos carros haviam dado lugar ao zumbido eletrônico dos aparelhos de tevê, algo atingiu o chão no andar debaixo com um ruído abafado que tirou Tiago de seu torpor. Estranho, mas nada que o tirasse da cama. Em seguida, um segundo ruído, idêntico. Esses sons aborreceram Tiago. Ele vivia com a impressão de estar num eterno clímax psicológico, esperando para ter a grande ideia que mudaria tudo em seu universo. Um terceiro ruído: vidro se espatifando. Contra uma parede ou o piso. Como nos filmes. Isso acelerou os pensamentos de Tiago, mas os sentimentos de gratidão e seu papel de criatura protegida o impeliram a uma preocupação sobrenatural. Ele sacrificou sua sessão de imersão intrapsicológica e desceu as escadas. De meias, nas pontas dos pés.

Dois homens encapuzados destruíam a sala de estar com um pé de cabra e uma chave inglesa. Talvez ladrões. Certamente assassinos. O casal no chão da sala começava a ser soterrado pelos destroços da decoração. As portas foram sendo abertas bruscamente, mas a televisão praticamente no último volume vendia carros mais alto do que o ranger de qualquer dobradiça.

De volta a seu quarto, Tiago hesitou pela última vez diante da janela. Braços fortes numa jaqueta preta o arrancaram para fora com uma facilidade quase ridícula. Sem necessidade sua boca foi imobilizada pela enorme mão do homem com um lenço fedido. Foi-lhe mostrado um espelho. O caco de vidro na mão livre de seu raptor, que não era um espelho comum, não lhe mostrava seu rosto; o que se via ali era o quarto de Tiago. Do jeito que estava naquele exato momento.

Da perspectiva do espelho em que ele se via todas as manhãs, como num monitor de sistema de segurança, um dos assassinos de seus pais adotivos apareceu em seu quarto procurando pela próxima vítima. Abriu seu guarda-roupa, brandiu o pé-de-cabra debaixo da cama e depois saiu.

O homem no telhado colocou Tiago nas costas como um filhote de coala e saltou. Seus joelhos não cederam ao impacto com o chão e continuaram nas pernas. Eles rumaram para a escuridão da descida da Rua Woolf e a última visão que o rapaz teve daquele lugar foi do momento em que o incêndio começou.

Mais tarde, bombeiros diriam que havia sido um vazamento de gás e que, felizmente, ninguém estava em casa. Cheryl receberia o seguro e se mudaria para os Estados Unidos, onde viveria jurando que nunca tivera pais.

 - Esse trecho seria um início ou prólogo de um livro cuja história é tão pertinente na minha cabeça que desde 2010 eu venho lutando comigo mesmo para escrevê-lo. Acho que essa é a 5ª ou 6ª versão, não sei. preciso de alguma coisa concreta se quiser publicar um dia. 

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Querido B.



Achei bastante curiosa sua pergunta sobre como eu estou. Há uma infinidade de respostas possíveis, portanto diante da plenitude de opções, vejo-me acossado. Tenho mesmo é que tentar entender o que você espera (ouvir) de mim. Não digo que estou “bem” porque seria grosseria, falsidade e pieguice de minha parte. Digamos que atualmente (e aqui começa minha suposição) eu seja um corpo num universo de responsabilidades impostas por mim mesmo, cujo centro gravitacional – o núcleo – é o cérebro, e não mais aquele coração selvagem à la Yoko Kano. A massa que se agrupa ao redor desse núcleo é composta por pedaços que morrem de medo de uma nova separação. A atmosfera é composta não por gases, mas por limites semelhantes àqueles cercadinhos para bebês. Detrás dela lanço um olho ao futuro, fisgando expectativas com as quais durmo e acordo. O outro olho vislumbra uma vida de prazeres apenas sonhada, uma sopa de lembranças e esperanças (muito quente!) da qual arrisco sorver pequenas quantidades com um bico hesitante. Devido à instabilidade do clima na minha superfície, ainda não posso – nem poderei tão cedo – ser habitado. Talvez eu possa dizer que estou pós-apocalíptico. Eis uma das minhas respostas favoritas à sua indagação. Espero e creio que estejas melhor que isso e melhor que antes.

Sempre seu,
O.

Imagem: PEYTON Elizabeth, Oscar and Bosie, Eve, Paris (1998)