Certa manhã o sol reiniciou seu fastidioso percurso do
horizonte ao leste até o outro lado da Terra sobre os telhados das casinhas
padronizadas de Anverlin. Apenas diferençável das outras por características
invisíveis a olhos forasteiros, a casa onde morava o órfão Tiago Tardelli
estava prestes a se tornar um cenário de terror. Seus excessivamente gentis
pais adotivos, mesmo inconscientes dos próximos eventos, estavam agindo de
maneira mais estranha que o normal. Submerso na monotonia das férias de um
garoto sem amigos, Tiago sustentava um olhar vago no telejornal matinal, sem
expectativas para mais um longo dia, e o Sr. e a Sra. Roosevelt tentavam como
podiam lidar com sua repentina condição:
- Não vai trabalhar hoje, meu bem?
- Ligaram da loja avisando que houve uma inundação. Parece
que só vão terminar os reparos amanhã.
- Meu Deus! Pois hoje teremos um domingo forçado: todas as
minhas clientes de massoterapia cancelaram.
- A gente podia almoçar fora. Ta afim, Tiago?
- Tanto faz.
- Acho melhor aproveitar a manhã livre pra cozinhar.
- A geladeira está cheia. Por que a gente não tenta dormir
mais um pouquinho?
O ar parecia se recusar a circular pelos pulmões de Tiago
quando ele levantou do sofá, deixando para trás sua forma suada em baixo relevo
na almofada e um casal de meia-idade se abraçando. Eles dois eram mestres em
lidar com as inadequações da idade do garoto. Tinham uma filha biológica que
acabara de sair dessa fase, por isso já não estavam nem aí para seus chiliques
silenciosos.
Preso em casa com eles, Tiago só podia pensar em onde
estaria Cheryl, a tal filha dos Roosevelt. Ela tinha virado hipster, como dizia. Uma espécie hype de
hippie. Ao invés de andar com ela e tentar se enturmar, Tiago hesitava diante
da janela, diante de tudo. Esperava inconscientemente que algo acontecesse para
mudar sua vida.
Pois então, naquele dia sua espera terminou.
Às nove da noite, quando o silêncio das vozes das pessoas, dos
pássaros e dos carros haviam dado lugar ao zumbido eletrônico dos aparelhos de
tevê, algo atingiu o chão no andar debaixo com um ruído abafado que tirou Tiago
de seu torpor. Estranho, mas nada que o tirasse da cama. Em seguida, um segundo
ruído, idêntico. Esses sons aborreceram Tiago. Ele vivia com a impressão de
estar num eterno clímax psicológico, esperando para ter a grande ideia que
mudaria tudo em seu universo. Um terceiro ruído: vidro se espatifando. Contra
uma parede ou o piso. Como nos filmes. Isso acelerou os pensamentos de Tiago,
mas os sentimentos de gratidão e seu papel de criatura protegida o impeliram a
uma preocupação sobrenatural. Ele sacrificou sua sessão de imersão
intrapsicológica e desceu as escadas. De meias, nas pontas dos pés.
Dois homens encapuzados destruíam a sala de estar com um pé
de cabra e uma chave inglesa. Talvez ladrões. Certamente assassinos. O casal no
chão da sala começava a ser soterrado pelos destroços da decoração. As portas
foram sendo abertas bruscamente, mas a televisão praticamente no último volume
vendia carros mais alto do que o ranger de qualquer dobradiça.
De volta a seu quarto, Tiago hesitou pela última vez diante
da janela. Braços fortes numa jaqueta preta o arrancaram para fora com uma
facilidade quase ridícula. Sem necessidade sua boca foi imobilizada pela enorme
mão do homem com um lenço fedido. Foi-lhe mostrado um espelho. O caco de vidro
na mão livre de seu raptor, que não era um espelho comum, não lhe mostrava seu
rosto; o que se via ali era o quarto de Tiago. Do jeito que estava naquele
exato momento.
Da perspectiva do espelho em que ele se via todas as manhãs,
como num monitor de sistema de segurança, um dos assassinos de seus pais
adotivos apareceu em seu quarto procurando pela próxima vítima. Abriu seu
guarda-roupa, brandiu o pé-de-cabra debaixo da cama e depois saiu.
O homem no telhado colocou Tiago nas costas como um filhote
de coala e saltou. Seus joelhos não cederam ao impacto com o chão e continuaram
nas pernas. Eles rumaram para a escuridão da descida da Rua Woolf e a última
visão que o rapaz teve daquele lugar foi do momento em que o incêndio começou.
Mais tarde, bombeiros diriam que havia sido um vazamento de
gás e que, felizmente, ninguém estava em casa. Cheryl receberia o seguro e se
mudaria para os Estados Unidos, onde viveria jurando que nunca tivera pais.
- Esse trecho seria um início ou prólogo de um livro cuja história é tão pertinente na minha cabeça que desde 2010 eu venho lutando comigo mesmo para escrevê-lo. Acho que essa é a 5ª ou 6ª versão, não sei. preciso de alguma coisa concreta se quiser publicar um dia.
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