sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Conto: A Grande Mudança (parte 3 de 6)

Parte 1 - Parte 2

3

 O Purgatório era um barzinho frequentado pelo público alternativo da cidade: pouca luz, muito som e daiquiris perfeitos. Eu não vinha neste lugar desde que comecei o curso superior, mas ele estava tão fiel às minhas memórias que a sensação de ter dado um salto no tempo foi maravilhosa. Estavam tocando What goes around comes around quando o meu olhar encontrou o da inconfundível mulher de cabelos pretos repicados, maquiagem marcante e roupas predominantemente pretas.
Ela sorriu me chamando à mesa de onde acabara de sair um dos homens mais bonitos do lugar. Até hoje me pergunto o motivo de nunca ter tentado nada mais sério com ela.
– Boa noite, lindo! – Dois beijinhos.
– Erica, como é bom te ver! – Ok, concedida a licença para ser clichê. – Nossa, o tempo só fez bem a você!
– Ha-ha! Imagina... Você sumiu mesmo, né?
– Feliz natal! Agora estou aqui presente de presente.
Mais daquela risada linda.
Eu sorri dignificado entre goles dignificados do meu daiquiri de pêssego e limão, enquanto ela se deliciava com uma caipirinha de maracujá. Não demoramos a reviver pessoas e situações da época da escola, até que as conversas avançaram pelo tempo e espaço.
– Mas você e esse seu primo costumavam ser próximos? – Ela acabou querendo saber.
Fiz uma busca por Matthieu na memória e, tudo o que encontrei foram imagens difusas de um garoto e a voz de minha tia:
“Ah, mas toda vida ele foi assim. Tirava a roupa por qualquer coisa! Nunca gostou de cueca, calça jeans... andou nu dentro de casa até os quinze. Foi um suplício até o pai o convencer a usar pelo menos esses shorts de futebol. Mesmo assim ele saía pela rua com as coisas balançando”.

Seria possível? Sacudi a cabeça. – Não me lembro de muita coisa da minha infância.
Percebi que os intervalos para os goles e olhares de escaneamento ao redor foram ficando longos demais. Uma conversa com alguém que não vejo há muito tempo tende a durar tanto quanto as lembranças relevantes, mas eu não podia deixar que esta morresse.
– Então... Ainda dando foras nos modelos da Calvin Klein? Parece que seu carma pra cafajeste bonitão não tem fim.
– Você viu, né? Não foi nada. Ele e o amigo estão disputando por mim desde que cheguei. O outro é mais bonito ainda.
– Eu nunca entendi os seus critérios, Erica. Sério.
– Eu fico com quem dá vontade. Sou guiada pelo olfato.
– Tipo feio, mas cheiroso?
– Escuta, não é um cheiro assim tão perceptível. Você tem que estar, sabe, receptivo para a coisa, entende? Para o sexo em si. A vontade apura o olfato, é um ciclo. Estou falando de um cheiro que você sente e exala pelo corpo todo.
– É tipo um cheiro sem cheiro que eu sinto, mas não sinto... Hummm.
– Por exemplo: você pode tomar um copo de suco de laranja e não sentir sabor do veneno que sua empregada colocou até que ele faça efeito, pode ficar com dor de cabeça por causa do zumbido de aparelhos eletrônicos e jurar que é só estresse, ou pode ter uma ereção enquanto espera ao lado da pessoa certa numa fila de banco.
– Uau! Agora que você mencionou isso, tenho que concordar.
Ela me saudou com sua bebida.
– E quem é melhor na cama? Bonitos ou feios? – Esta pergunta passou do subconsciente para a boca sem ser filtrada.
Erica ergueu uma sobrancelha, bebeu mais um gole e fez que “tudo bem” com a mão livre. – Isso depende, como eu já disse, do cheiro.
– Ah... – disse eu, provavelmente com a boca e a cara ao mesmo tempo. Àquela altura estava me perguntando se a bebida acelerava a mente ou retardava o corpo. No meu caso, acho que as duas coisas. Então pedi mais uma.
– Mas – Erica sorveu o restinho no copo fazendo barulho com o canudo – é no dia seguinte que a diferença fica mais evidente. Não é tanto na cama... Aliás, nem sei por que eu estou te contando isso.
– Por causa do meu cheiro.
Ela riu. Isso significava muita coisa. – Só pode ser! Mas então, acontece que os bonitos se supervalorizam, de acordo com as minhas experiências. Esperam que eu me apaixone no primeiro sexo oral. Depois que não dou bola, ficam no meu pé como os dois que te mostrei. Por isso os ditos feios – ela fez aspas com os dedos – levam vantagem, tipo, são mais o que eu procuro. Eles não confiam em você até tirarem toda sua roupa (nunca se sabe o que escondem as calcinhas hoje em dia!), e quando transam, aaaahhhh!
Algumas pessoas olharam para nós quando ela jogou a cabeça para trás e soltou uma risada de bruxa. Quase me escondi atrás do copo, mas pensei, quer saber? Que se f...
– Jean, eles dão e tiram o máximo de proveito, e eu tenho minhas suspeitas do porquê, mas são bobas e egocêntricas. No dia seguinte eles não me enchem o saco. Devem dizer aos amigos que foi só uma noite de sorte ou que eu estava bêbada demais...
– Acho que os homens, quero dizer, nós não somos tão modestos assim.
– Ai, sei lá! Já me apaixonei por muito cafuçu só pelo senso de realidade deles.
O avançar das horas praticamente me arrancou do Purgatório. Havia sido tão bom rever minha velha amiga, mas será que se nós voltássemos a sair como temia minha mãe, as coisas seriam sempre assim? De qualquer forma, estava me sentindo muito mais leve, mas ainda havia a sensação de que não era sobre isso que eu queria ter conversado. Na verdade eu estava mais certo disso do que podia admitir.

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