domingo, 10 de fevereiro de 2013

Conto: A Grande Mudança (parte 2 de 6)

Como prometido, aqui vai a segunda parte do meu conto para todo mundo! 

2

Os dias se empurraram para frente, engordurados pela agonia que crescia dentro de mim. Havia essa vontade de negar o que eu não gostava até que a coisa sumisse da minha cabeça. Enquanto isso, esperava obstinadamente pelo próximo evento marcante na minha vida: a chegada de Matthieu, só pra sair da rotina. Não que não gostasse da rotina, pois a mente ocupada era uma cruz para meus demônios.
Eu estagiava em RH na F&G Visual Mídia, um empreguinho arranjado de qualquer jeito, mas que pelo menos me aproximava da minha área – fisicamente. Estava quase superando o choque entre a realidade acadêmica e a profissional quando eu e Catarine terminamos, e as coisas estavam me estressando a ponto de fazerem com que eu me voltasse completamente para o trabalho.
Nas sextas-feiras após o expediente, Homero (meu chefe) e eu frequentávamos o Talismã Café. O fato de eu ter sido gentil com ele numa época em que ninguém mais o valorizava me rendeu meu emprego atual e sua amizade.
Enquanto esperava por ele, tomava uma cerveja deliciosa. Hoje penso que o sabor daquela bebida vinha mais da minha tensão que dos ingredientes cinematograficamente mostrados no comercial. Podia ser qualquer coisa ali: água, Coca-Cola, sulfato ferroso... Em todo caso, senti-me eufórico ou animado e cheio de expectativa, então olhei para a moça do meu lado e perguntei:
          – Você diria que esse copo está meio cheio ou meio vazio?
– Ah, me poupe! – ela nem olhou pra mim e já foi levantando para ir embora!
Acho que acabei pagando pelo drinque dela, mas não importa porque foi nessa hora que Homero chegou. Ele era um homem distinto em sua discrição excessiva. Notável pelo formatinho de bolacha, do nariz para baixo seu rosto fazia uma curva acentuada para dentro, deixando o crânio quase perfeitamente esférico, dada sua inquietante ausência de queixo.
Esgueirou-se bar adentro, todo cuidadoso para não encostar nas pessoas, mal as olhando nos olhos. “Desculpe! Com licença, senhor, eu poderia...? Tudo bem.” Se eu não houvesse esvaziado um lugar ao meu lado com meu charme, ele viria com uma conversa de que ali era cheio demais, bla, bla, bla.
– Jean! – apertamos as mãos. – Você parecia apressado no telefone. Espero que não esteja com problemas.
Eu tive que rir! – Está tudo bem, meu chapa. Só estou afim de conversar.
– Se é assim, eu acho que está tudo bem. – Homero levantou o indicador com mais cara de polegar que existia para pedir o cardápio. Ele sempre fazia isso pela porcaria de uma água tônica. – Já está aqui há muito tempo?
– Primeira garrafa.
– Ah, bem – a água tônica chegara. Eu parei para ficar observando enquanto ele passava o guardanapo na borda da latinha e fazia bico pra beber aquele mijo gaseificado antes mesmo de abrir o lacre completamente.
– Olha só pra você – soltei. Queria saber como uma figura daquelas era meu chefe e ainda mais se ele era mesmo real.
– O que?
“Essa sua camisa polo ensacada no jeans na metade da barriga enlaçada por esse cinto de vaqueiro”, mandava-me dizer a cerveja em cima do estômago vazio. – Nada, pensei alto.
– Ah. Sobre o que você quer conversar?
– Qualquer coisa. No que você está pensando?
Ele parou de olhar para a latinha e girou as bolotinhas oculares nervosas para mim. – Acho que quem quer falar é você. Esse tipo de pergunta faz um branco na cabeça da gente.
um branco, verdade. Esperto, você. É a tônica?
Ele riu. – O que exatamente fez você vir ao Talismã hoje, Jean?
– Cerveja (mais uma, por favor)... E uns pensamentos.
– Cuidado.
– Com o que? Eu só bebo em caso de vida ou morte.
– Com os pensamentos. Eles são como uma água escoando. Se for bem direcionada, vai irrigar uma horta que irá te alimentar depois. Se não, vai direto para o pior dos esgotos.
Eu olhei assim pra ele... – Ô garçom! Cancela a cerveja, me traz uma água dessas, por favor?

De 15 de dezembro a 15 de janeiro a F&G Visual Mídia liberou metade dos funcionários e eu fui um dos infelizardos que foram passar as “festas” em casa, desfrutando da mágica de um natal com poeira (e não neve) em pinheiros de plástico na sala colorida por um sistema de iluminação com 50% da capacidade prometida na embalagem e adornada pelos mesmos enfeites do ano anterior.
Não. Eu não iria ficar acorrentado em casa à tão divertida quanto variada programação natalina na televisão. Não me achava bom o suficiente para aquilo.
Pensando nisso – já que deveria conversar com alguém a fim de resolver meus conflitos e estar com a cabeça no lugar quando meu primo chegasse –, decidi usar a semana de natal como desculpa e, fantasiado de espírito natalino, revisitar o passado – sabendo que daria de cara com uma apática rena do nariz vermelho na primeira superfície capaz de mostrar meu reflexo.

Eu só percebi que havia hierarquizado mentalmente as pessoas depois que de decidir procurar por elas. O sistema seria mais fácil de lidar se a ordem recomendada pelo meu lado emocional não fosse tão meticulosamente oposta à do lado racional. Acabei aderindo à ordem alfabética, recomendada pela agenda do meu celular. Não havia muitas opções, é claro. Depois de avaliar a lista de cima a baixo, concluí que ligaria para os que me fizessem sentir menos ridículo: Erica e Homero.

Leia a Parte 3 aqui

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