sexta-feira, 5 de abril de 2013

Conto: O coelho na sua cartola



Ele sempre foi um cara muito sensível. Tínhamos a mesma idade, mas essa sempre foi a diferença mais brusca entre nós, ao meu ver. Quando terminou com a namorada, ou melhor, quando ela terminou com ele, chorava todas as noites, inconsolavelmente. Até que numa dessas eu precisava muito dormir e resolvi tomar uma atitude. 

- Ei, ta acordado? 

Ele fez que sim com a cabeça. 

- Vem aqui. 

Eu sabia que ele viria, que precisava. E ele também. Àquela hora a gravidade era maior. Ele rastejou de dentro dos lençóis até a minha cama e sentou ao meu lado, o rosto completamente arruinado pelo pranto me perguntando o que fazer. Só me afastei e deixei que ele caísse do meu lado. Não haveria problemas. 

Desde que começamos a dividir esse apartamento eu tenho desenvolvido funções bem distintas das de um simples estudante. Fora os serviços domésticos, também fui forçado a ter conversas com ele que, sem querer ser ofensivo, demonstravam a incompetência de seus pais em certos aspectos, pela história que eu conhecia. Então nunca me importei. “Você tem um instinto paterno” e “você leva jeito pra ser pai” foram coisas que eu passei a vida inteira ouvindo, e acho que é bem assim mesmo. 

Enquanto ele se aninhava ao meu lado, dei um jeito de colocar um braço por debaixo de seu pescoço, querendo dar algum suporte àquela cabeça perdida. Então ele colocou seu braço no meu peito e, com o rosto no meu ombro, voltou a chorar. Mas dessa vez o choro foi diferente. Foi como se, sob o meu enlace, algo houvesse se desatado dentro dele, abrindo as comportas que impediam um rio de avançar sobre uma cidade, um rio que apenas sangrava, agora escoando, varrendo, lavando, levando, devastando tudo. 

Pensei na minha mãe, no meu pai. Havia mistérios entre eles. Havia mistérios que inclusive me envolviam. Ao contrário da fonte de todas as lágrimas que irrigavam esses pensamentos, eu fui criado num cenário de dores e adversidades, coisas que me fizeram um homem forte. Também não achava que o caso do meu amigo fosse problema de um menino mimado. Uma vez me disseram que cada um tem seus conflitos, então deveríamos ser gentis. 

Eu deveria ter encontrado um fim trágico como os meus antigos amigos, mas por mais estranho que pareça, em algum momento da minha vida as coisas tomaram um rumo diferente. Em algum momento, tudo o que eu via e ouvia passou a ter uma cor e a soar diferente. Então mesmo sem o esforço dos meus pais, mesmo sem nem sua intenção, eu acho, eu me tornei um cidadão, um bendito homem de bem. Talvez eu tenha sido escolhido para alguma coisa grandiosa, talvez eu simplesmente devesse estar aqui e agora, enxugando as lágrimas de um garoto. 

Na manhã seguinte acordei sozinho na cama. Ele havia deixado um cheiro de mobília nova, de coisa recém-desempacotada no meu lençol. Encontrei-o na cozinha terminando um fartíssimo café da manhã. Estava limpo, barbeado e rejuvenescido. Apesar das marcas do abatimento, havia enfim dormido bem. Mas não me desejou um bom dia. 

- Será que – ele me perguntou – se ela tivesse ficado com você ao invés de mim as coisas teriam terminado assim? 

Não respondi porque não faria diferença, afinal. Nada sairia dali, nada significava mais nada depois do nascer do sol.

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foto: KYAV

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