sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Análise: Prosopopeia em E tem outra coisa, de Eoin Colfer

Nota do Guia: Lembrar-se geralmente é um processo que envolve dois estágios no cérebro, implicando diálogo entre as partes consciente e subconsciente. O subconsciente inicia este procedimento vomitando memórias relevantes, um ato que libera um jorro de endorfinas autocongratulatórias.

- Muito bem, cara - diz o consciente. - Esta lembrança é realmente útil nesse momento, eu tinha me esquecido de onde a tinha guardado.

- Você e eu, parceiro - diz o subconsciente, feliz por ver sua colaboração sendo reconhecida pelo menos uma vez. - Nós estamos juntos nessa.

Depois, o consciente revê a lembrança em sua mesa de trabalho e manda uma mensagem dizendo para o esfíncter se preparar para o pior.

- Por que você me lembrou disso? - grita ele com o subconsciente. - Isso é medonho. É terrível. Não queria me lembrar. Por que zark você acha que eu a enfiei no fundo do cérebro?

- Esta é a última vez que te ajudo - choraminga o subconsciente enquanto se recolhe para as partes mais escuras de si mesmo, onde os pensamentos malignos se abrigam. - Não preciso dele - diz a si mesmo. - Posso fazer uma nova personalidade para mim com as coisas que ele descartou. - E assim, as sementes da esquizofrenia são plantadas junto com adubos de bullying, negligência, baixa autoestima e preconceito.

Por sorte, betelgeusianos não tem quase nenhum subconsciente, então tudo bem.¹
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Uma das coisas mais marcantes da obra de Douglas Adams (além do seu modo de falar da vida, do universo e tudo mais), é a prosopopeia - a atribuição de características humanas a seres inanimados -, também comumente utilizada com elementos abstratos. Quem conhece a obra ou pretende conhecer pode se deliciar com a maestria do autor d'O Guia do Mochileiro das Galáxias ao lidar com essa fabulosa figura de linguagem.

Outro autor que teve a perspicácia de não apenas perceber isso, mas de fazer um uso igualmente magistral foi Eoin Colfer, quando foi convidado a escrever o sexto volume da saga original. Já no primeiro capítulo de E Tem Outra Coisa... ele  presenteia os leitores - principalmente da nossa geração - com o trecho genialmente cômico acima.



Eoin Colfer e Douglas Adams
Ford Prefect, natural de Betelgeuse (Alpha Orionis (α Orionis) conhecida como Betelgeuse é uma estrela de brilho variável sendo a 10ª ou 12ª estrela mais brilhante no firmamento²) estava relaxando com uma massagem aquática aplicada por Barzoo, um polvo com milhares de doutorados, quando se deu conta de que aquilo não era real. Tampouco era um sonho, mas algo pior. A consciência disso lhe foi trazida pela memória ao identificar a semelhança do tal polvo com um pássaro - acredite, faz sentido para quem conhece a obra! Por isso o autor faz uso da intervenção do Guia (do Mochileiro das Galáxias) na narrativa, um dispositivo semelhante a uma enciclopédia astronomicamente abrangente, citando uma nota sobre o que se diz no verbete referente a "lembrar-se".

O texto de Colfer vai além de um o sol mostrou sua face sorridente pela manhã e utiliza do estilo para adicionar falas e mesclar outras figuras de linguagem, como ironias e metáforas muito bem elaboradas com uma linguagem científica leve e degustável para até mesmo quem acha que apenas o senso comum é o bastante (dificilmente o caso de quem lê).

Uma ironia é que o próprio subconsciente tem lá sua consciência, mas comicamente marcada pelo apelo emocional: "- Esta é a última vez que te ajudo - choraminga o subconsciente enquanto se recolhe para as partes mais escuras de si mesmo, onde os pensamentos malignos se abrigam." Ele é excessivamente rancoroso!

A metáfora do trecho "Depois, o consciente revê a lembrança em sua mesa de trabalho e manda uma mensagem dizendo para o esfíncter se preparar para o pior" mostra o cérebro como um escritório onde memórias são arquivos que podem ser inusitadamente acessados é excelente para a intenção do narrador: a comicidade. 


Referências:
1. Tradução de Alves Calado, publicada pela editora Arqueiro em 2011.
2. Fonte: Wikipedia
Imagens: Google né!

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