Minha mãe é uma mulher extraordinariamente fantástica. Não é de admirar que muitas das coisas nas quais eu me destaco — como contar histórias, o senso de humor, a paixão pela simplicidade das pessoas e da vida — tenham vindo dela. Em seus melhores dias, ela conta inúmeras histórias as quais presenciou ou protagonizou e que, por mais que tenham um fundo trágico, não deixam de provocar toda sorte de emoções.
Foi
numa noite de domingo, enquanto ela passava roupas na cozinha e eu jantava o
almoço esquentado, que ela contou a mim e a sua afilhada mais uma das suas
(intituladas por mim) Histórias do
Calabouço. Tratava-se de lembranças de sua infância no interior — por volta
dos anos 1970, quando morava com a mãe e cerca de mais seis irmãos —, que
geralmente vinham à sua mente por assemelharem-se a fatos cotidianos. Desta vez
ela contou como se livrou da culpa pela morte de um porco, logo depois de ter
contado como uma cobra acabou chocando os ovos de uma perua embaixo de um
cajueiro por causa da preguiça de seu irmão.
— Agora eu não podia levar a culpa! —
disse, referindo-se às constantes injustiças cometidas por erros de
pré-julgamento, típicas de sua mãe. — Naquele dia eu tinha saído, ido para o
açude e o porco veio atrás de mim. Eu terminava os serviços e, de tardezinha,
saía pela mata e lá vinha ele na minha cola. Era incrível como ele vinha, a
cabeça e as orelhas baixas, mas sem perder o ritmo. Atravessava até o riacho
comigo – você só via o focinho de fora d’água!
Eu ria de tão impressionado. Era
simplesmente estranho demais imaginar um porco se comportando daquela maneira!
— Quer dizer — comentei — que o porco te
seguia feito um cachorro? Depois nadava e tudo?
— Era — respondeu ela, como se aquilo
fosse a coisa mais normal do mundo. Na cidade não se vê porcos, isso contribui
para a construção de um abismo entre as crianças da minha geração e a visão
desses bichos. Que eu lembre, os poucos que vi estavam chafurdando sacolas de
lixo na feira enquanto aguardavam inconscientemente pelo seu abate. Isso há
muito, muito tempo atrás, na minha infância.
— Ele sempre me seguia. Às vezes eu ia
para a casa de uma amiga minha e ele ficava deitado na calçada, bem
tranquilo... dormia a tarde toda. Depois quando dava a hora de voltar, ele
levantava e voltava pra casa comigo. No dia do açude foi mesmo assim. Iam os
meninos — seus irmãos — pra se encontrar com as namoradas, né, e eu.
Eu ri mais ainda, balancei a cabeça
negativamente, refletindo sobre o quão tragicômico aquilo poderia ser.
— Então eles iam encontrar as namoradas e
você ia acompanhada do porco? Tipo, melhores amigos? — eu quis saber.
A afilhada se acabava de rir, dizia que
não aguentava mais, pelo amor de Deus, mordiscava as costas da cadeira onde
estava sentada e se sacudia toda. Era incrível o ar de inocência que a minha
mãe assumia enquanto contava essas coisas, como se por um momento de vívida
alegria, ela pudesse voltar à infância e reviver suas peripécias mais
fabulosas.
Uma coisa que me chamou a atenção foi
como, naquele tempo e naquele lugar, sem as influências das culturas de massa,
as coisas eram mais rudimentares e mesmo assim não perdiam a consistência. Isto
é, havia algo de amizade entre a menina e o porco que caminhavam pela mata e
atravessavam a nado o riacho – visão um tanto soturna para o contexto de hoje
em dia –, mas o fato de o animal não ser nada bonitinho ou mesmo limpo, e de
nem ao menos ter um nome, remetem à pureza da infância, quando somos todos meio
selvagens e livres de futilidades comercialmente estéticas.
“Ele ia muito animado, mas voltar ele não
queria. Chega vinha cansado, respirando pesado, de cabeça baixa... isso porque
para ir tinha uma ladeira que a gente descia. Na subida é que ele se lascava!”,
disse rindo.
— Pois nesse dia — prosseguiu minha mãe
—, a gente voltou e, depois que mãe chegou do roçado, viu algo estranho. “Você
matou o porco! Tanto que eu falei pra você não levar esse porco pra o açude, e
você não me escutou! Entrou água no ouvido dele!”
Minha avó havia encontrado o porco
deitado sobre um colchão de palha, agonizando. Quando saíram para examiná-lo,
ia passando um velho vaqueiro à distância. A mãe e as duas filhas – uma era
minha tia, a mais velha, e a outra a minha mãe – gritaram pelo homem. A crença
era de que se podia gritar por socorro e pedir remédio, mas se fosse dito para
que, a doença atacaria mais implacavelmente. No caso do porco, ele teria uma
hemorragia no ouvido.
“Seu fulano! Ô, seu fulano!”, chamou
minha avó, do alto da inclinação no terreno. “Traga aquele seu remédio, aquele
que o senhor dá às vacas!”
“Hein?”, gritou de volta, o velho.
“Remédio? Que remédio?”
“Remédio pra água no ouvido!”,
esgoelou-se minha tia. O porco, como se por manha, começou a espernear e
gritar, em sua agonia derradeira.
Nessa hora eu e a afilhada da minha mãe
explodimos em gargalhadas! A minha tia havia terminado de matar o porco!
— Eu sabia que não tinha sido culpa minha
— defendeu-se minha mãe. — Até a gente chegar o porco estava bonzinho! Quando o
vaqueiro chegou, ele disse a mãe: “Ah, dona Hilda! Isso aqui foi água não!”,
ela: “e o que foi?”. Ele respondeu: “Isso foi é mordida de cobra”!
Então começou o alvoroço. O que era bom
pra veneno de cobra? Cuspe de grávida! Por sorte havia uma, a atual mulher de
um dos meus tios, com sua primeira filha na barriga. Pois sim! E imagine você a
cena: Uma mãe com duas filhas, ao lado de um vaqueiro e um cavalo – igualmente
velhos – abrindo a boca de um porco agonizante deitado sobre um colchão de
palha, para que uma negra grávida cuspa-lhe dentro da boca!
Mesmo após o feito heroico, era tarde
demais. O vaqueiro enfim mostrou-lhes a mordida da cobra abaixo da orelha do
porco, quatro furos circulados por uma pele inchada e escurecida pelo veneno. E
minha mãe concluiu:
— Só restava agora fazer uma coisa: Tocar
fogo no colchão pra encontrar a cobra. O vaqueiro riscou um fósforo e quando o
fogaréu subiu, a bicha saiu de dentro da palha!
— Saiu só uma? — Perguntei,
impressionadíssimo.
— Só uma, enorme!
E foi assim que ela se safou de levar uma
surra terrível mesmo sendo inocente. Por sorte, houve a intervenção de alguém,
mas isso nem sempre era útil.
Supor que uma infância assim seria
traumatizante talvez não passe de frescura de pais e médicos modernos. Talvez a
coisa toda seja bem pior do que isso. Minha mãe viveu e presenciou horrores
inconcebíveis por nós, mas a fé e o bom senso a permitem enxergar o lado bom
disso tudo. Um bom costume que eu preciso adquirir com urgência e que ela
mantém até hoje.
Gilson França,
Novembro de 2012