quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

A Francesca (conto)




Apesar de cientistas afirmarem que a humanidade como nós a conhecemos hoje já caminha pela face da Terra há cerca de 50 mil anos, alguns indivíduos homo sapiens parecem fazer questão de refutar tal cálculo através de atitudes bastante peculiares, levando-nos a crer que só estamos aqui há apenas dois mil e poucos. Esse comportamento vai contra o que se espera de vinte e cinco vezes mais tempo de evolução e contra isso os cientistas não podem argumentar. No entanto, uma observação global revela algo bom para pessoas otimistas: Há evidências de que a humanidade teria evoluído em ritmos descompassados em diferentes partes do planeta. Há evidências também, de que os indivíduos mais evoluídos se concentram em determinado hemisfério do globo terrestre. Assim como há frequentes evidências de que “evolução” é equivocadamente interpretada como algo bom.

Façamos um paralelo entre dois lugares. De um lado, a França: país de pessoas sofisticadas, sempre lembrado por belezas como o Arco do Triunfo e a Torre Eiffel. Seus perfumes são tão sedutores quanto sua literatura e idioma. O clima favorece a boa moda e a soma de tudo isso atrai a atenção, o carisma e os turistas do mundo inteiro. Do outro, a Francesca, município às margens de uma pequena capital no Brasil, que de maneira muito obscura tem alguma participação francesa em sua breve história (50 anos), e que é uma paródia de mal gosto de uma cidade, tendo as mesmas características que a França, só que ao contrário.

Certa noite, na Francesca, um grupo de nativos que teve acesso a microfones e caixas de som estava reunido, celebrando com muito escândalo a existência de uma entidade mística que tinha dois mil e poucos anos. Seu nome era Mana, filho de Goh – O tal Goh tinha fama de existir antes mesmo do universo. Os motivos da celebração incluíam: 1 - o grupo concordava com a existência da entidade unanimemente, embora divergissem sobre o propósito dessa existência, pois ela era meramente psicológica, então estava passível de múltiplas interpretações; 2 - os membros do grupo se alegravam ao expressar verbal e fisicamente submissão a Mana em troca de um lote no suposto mundo supostamente habitado por ele e seu pai; 3 - o grupo duvidava que a Mana sozinho reconhecesse seu mérito como servos, então precisava que seus indivíduos competissem, mostrando uns aos outros que estavam cumprindo bem o seu papel. A celebração seguia freneticamente.

A duas quadras de distância, morava Joel, que não conseguia descobrir se estava frio ou quente porque a temperatura de seu corpo estava completamente instável, devido a uma febre pertinente. Joel não conseguia também repousar, como recomendaram seu médico e sua mãe, justamente por causa da celebração na vizinhança. Em sua agonia, o rapaz tentava acalmar-se imaginando em que momento da evolução seu cérebro havia ficado diferente dos fiéis fervorosos que aparentemente nunca tinham dor de cabeça ou de garganta. Sua própria mãe, Dona Neta, também acreditava em Mana, seu pai Goh e outros personagens de um épico da baixa literatura milenarmente mal interpretado. Mas ela fazia parte de um grupo mais antigo e silencioso, porém com uma história sombria e sangrenta que ficou no passado e deu lugar a ovelhas cansadas. 

Criado para temer a Goh e amar a Mana, assim como seus ancestrais por motivos mesquinhos, Joel imaginava ter um propósito para todo seu sofrimento. Os adoradores acreditavam que Mana passou por coisas horríveis até reconquistar o lugar de onde foi posto pra fora após o conflito entre Goh e dois elfos rebeldes, dando início a uma guerra que de tão incoerente, passou a ser amplamente aceita. “Vamos balançar a cabeça e dizer que entendemos, porque nossas dúvidas são tão óbvias que pareceremos idiotas perguntando.”, diziam a si mesmas as pessoas que ouviam ou liam a história. Joel estava passando por coisas terríveis (ou pelo menos assim elas eram em sua cabecinha), mas aguentava firme e forte esperando a boa vontade de Goh reconhecer seu sofrimento e fazer algo a respeito para compensá-lo. Enquanto isso, ele nutria sonhos de um dia ir embora da Francesca e ser feliz ao lado de um homem que amaria por muitos anos.

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